segunda-feira, 2 de março de 2015

Herança

    Lá na portaria, é um lugar de muita agitação. Apesar d'eu ser tímido e não conversar com muita gente, tenho que me comunicar a todo instante pra dar informações, abrir e fechar portões, ajudar motoristas desajeitados a estacionarem seus veículos de modo que o espaço do estacionamento seja melhor aproveitado pra caber mais carros, e por aí vai. Os carros são um capítulo a parte. Não me interessa ensaiar definitivamente sobre isso, mas, me parece que eles são impulsionadores do que há de pior em nós; o egoísmo. Mas não me convém falar por agora da estúpida indignação que as pessoas apresentam quando eu digo que não há mais vagas no estacionamento - e que por conta disso terão que estacionar seus carros na rua mesmo - , mas quero falar de uma experiência que me fez enxergar uma verdade simples, mas muito bela e densa.
    Cumprimento a todos que passam na portaria da escola que eu trabalho. No turno da noite funciona um curso técnico, e o quadro de alunos, conforme o tempo vai passando, vai mudando. Os alunos vão se formando, e consequentemente vão entrando outros, essa coisa toda normal da vida. Numa dessas novas levas de alunos, avistei de não muito longe um rapaz que eu nunca tinha visto passar por mim na portaria. Ele estava com o uniforme do curso e mantinha a cabeça baixa, olhando pra sei lá o que no chão. Ele se aproximou mais e levantou a cabeça. Um rapaz "normal" como se diria. Um verdadeiro "homem médio". Barba feita, cabelos bem cortados, calça jeans e a blusa azul do uniforme de aluno. Quando ele estava já bem perto, pude ver mais claramente suas feições e algo me chamou muita atenção, ele me era muito familiar. Seus olhos traíam simpatia e bondade, e quando passou por mim me cumprimentou com simplicidade, discrição e poucas palavras, porém com muito respeito, educação e simpatia. Eu desejei de volta uma boa noite e fiquei a pensar se por um acaso eu não conhecera ele em épocas remotas, na infância, ou até mesmo da televisão ou da internet. Não cheguei a nenhuma conclusão a esse respeito, nem mesmo depois de ele passar novamente pela portaria, desta vez indo embora para sua casa ao final da aula. Sem nenhuma apologia e/ou menção a esoterismo, ou coisas afins, mas essa história de aura positiva da pessoa, é meio que verdade. Ele tinha isso. Emanava de seu rosto, de seus olhos, dava pra ver! Tanto quando me cumprimentava quanto quando passava com seus colegas de classe na hora de ir embora, no seu trato com os tais.
    E assim foi, por todo o tempo que ele estudou lá. Quando acabou seu curso, eu não mais o via passar por ali. Só de vez em quando na praça da cidade ou no centro. Mas sempre ficava a pensar como podia alguém transparecer simpatia e simplicidade sem ao menos falar ou agir. Isso pra mim figurava como uma verdadeira incógnita. Mas, um dia, eu pude compreender o porque.
    À caminho do centro, eu subia um morro, cansado. Até que olhei de longe e avistei este rapaz e ao seu lado estava uma senhorinha morena, de cabelos curtos, vestido exageradamente estampado, e então eu pensei; "Aquela deve ser a mãe dele." e de fato era. Porque quando me aproximei mais, reconheci uma das pessoas mais legais que já conheci na vida! A Tia Lucinha. Ela era merendeira da escola que eu estudei no ensino médio. A Tia Lucinha era venerada por todas as crianças, era muito simpática, sorria para TODOS e ainda me dava um pouquinho mais de doce de leite quando esta era a sobremesa. Ela sempre brigava com o diretor da escola quando pessoas necessitadas vinham almoçar no refeitório da escola e este dizia que a escola não era a mãe delas. Era a única vez que a gente via a Tia Lucinha brava.
    Logo tudo se conectou, e eu percebi da onde conhecia aquele rapaz. Quando fomos nos aproximando, meu cansaço sumiu completamente e eu a fui abraçar e também cumprimentei o seu filho, revelando a surpresa de conhecê-lo lá do meu trabalho. Cometi um ato falho ao dizer que foi surpresa, porque mesmo que inconscientemente, eu reconhecia a Tia Lucinha naquele rapaz.
    Constatei depois disso tudo que eu quero ter a virtude de passar aos meus filhos o que há de melhor em mim.

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

O salto do peixe

    É fato que minhas histórias seguem algumas mesmas linhas, portanto, iniciarei esta de um lugar em que estou todos os dias. Um lugar de profunda reflexão, refúgio e acalanto. O ônibus, como na crônica "Pra que tanta ganância Juvenal?".
    Tratava-se de um daqueles "dias comuns" e eu estava eu indo pra faculdade, passando pela rodovia BR - 101, essa testemunha do caos que corta quase o Brasil por inteiro. Mas, estou tratando especificamente do trecho entre São Gonçalo e Niterói, que é margeado pela velha conhecida Baía de Guanabara.
    Coitada da baía, alvo de tantos ataques! Objeto de tão intenso repúdio e nojo, depósito de lixos e nichos, núcleo central de emanação de odores repugnantes! O que mais dizer da baía? E o que dizer dos que tornaram o objeto de mais pura admiração dos portugueses - que em 1502 chegaram nas deslumbrantes águas azuis da antiga baía confundida com um rio pensando que esta era uma foz - em uma fossa gigantesca, cheia de línguas negras e lama podre? Esses tais que a tornaram assim, deixaram um legado para todos nós, um legado que nós aceitamos, corolariamos e perpetuamos, a ponto de passarmos todos os dias em suas margens, e não refletirmos sobre a cena horrível ao nosso lado só porque queremos chegar a tempo no trabalho. Garças solitárias pisando em ovos no meio do lixo, e o pensamento que vem à mente é; "Coitada, vai comer o que?!" Pois era justamente neste ponto que eu queria chegar.
    O ônibus estava preso num trivial engarrafamento e eu me pus a observar a baía. O dia era até de sol, e eu estava com essa sensação de bolo na garganta, olhando-a com esse olhar de compaixão de quem vê um pobre miserável mendigando comida, como se este fosse a baía mendigando vida! Vida... quem nunca teve a sensação de que a Baía de Guanabara é sinônimo de morte? Pois bem, olhando fixamente para um pneu que jazia no meio de uma área já um pouco alagada, um pouco adiante de sua maré sempre atrasada e rasa, eu comecei a enxergar aquele objeto boiando como um câncer no meio de um corpo saudável. Algo sintético que poluía a beleza e a poética do natural. Por um momento, "infantilmente", imaginei um grande e colossal monstro feito de pneus que defecava lixo, suava esgoto e vomitava óleo na baía, que chorava e lacrimejava sangue. Que coisa horrorosa! Que sensação de descrença e que descompensação pelo estado deplorável de não-vida da baía.
    O dia de sol com raios alegres de luz não combinava com a tenebrosa e negra epifania que eu estava tendo naquele momento. Mas acho que se o dia estivesse nublado e melancólico, eu teria morrido de terror! Um calafrio me subia a espinha, e eu trêmulo, não conseguia tirar meus olhos da baía, e do pneu. Foi quando de repente, algo curioso aconteceu..
    Um peixe! UM LINDO E BRILHANTE peixe, grande! Não sei dizer qual peixe era, afinal me falta perícia em tais assuntos. Mas é certo que o peixe era grande, comprido como uma flecha e brilhante como um diamante. Ele deu um salto tão alto e bonito, que me deixou estarrecido! E eu fiquei a pensar; como é possível um peixe lindo e brilhante como esse, conseguir viver na baía? Como consegue morar nessas águas negras e contaminadas? Como suas guelras filtram essa podridão e como ainda por cima consegue encontrar alimento? Peraí, se o peixe encontra alimento, é porque esse mesmo alimento também consegue outro alimento, e assim por diante. Será mesmo que eu estava enganado quanto à baía? Acredito que sim. E sua aparência mórbida, acaba sendo "apenas" aparência, afinal de contas.
    Quanta vida ainda há, onde não queremos mais enxergá-la?

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Suicida por engano



    “Luisinho meu velho, pode ficar com a bicicleta pra você. Você não sempre quis uma? Então, ela é sua! [...] Não, não tá acontecendo nada não, está tudo ótimo. Tchau.” Horácio desligou o celular rápido, mas sem ser grosso. Apenas para não dar margem a indagações das quais não tinha mais paciência pra responder. Luisinho havia sido a última pessoa da lista que ele preparara pra ligar antes de pular do viaduto. Terminado isto, jogou o celular o mais longe que pode.

    Olhando para o horizonte, tentou buscar no infinito uma derradeira razão para não mais dar cabo à vida. Avistou aves ao longe que voavam em bando, naquele formato angulado, característico das aves migratórias que viajam milhares de quilômetros. Por um momento ficou imaginando se aquelas aves sabiam de fato pra onde estariam indo, ou se estariam voando guiadas por uma força superior que regia o mundo natural. Concluiu algo aterrorizante naquele momento; ele sabia exatamente pra onde estava indo. As aves voavam daquele jeito, pois, estavam cegas de instinto natural para buscar alimento e boa temperatura, talvez. Já ele estava totalmente consciente do terreno em que estava pisando. Consciente até mesmo na ciência da falta de certeza do que lhe era a própria morte.

    A vida perdeu completamente a razão logo depois que ele descobriu que sua esposa, sua querida esposinha, a, desde criança amada, Talita, o traiu (e o traía frequentemente) com seu melhor amigo desde a meninice, o Celso. Como conceber uma desgraça dessas? Como aceitar uma conspiração que durava sabe-se lá desde quando! Auto-conjecturava Horácio. Seus dois sustentáculos na vida, agora provocaram sua ruína. Quantas coisas lhe foram veladas, “Quantas vezes eles riram de mim..” pensou. Agora ele entendia porque Celso não saía da casa dele. Lhe veio como um turbilhão toda a carga de sentido daquela horrível coisa que até então nunca tinha sido nem mesmo cogitada em sua pobre mente inocente. Neste momento Horácio lembrou do jargão que se popularizou nas redes sociais, proferido pelo cantor baiano Compadre Washington e percebeu a força desta pequena frase publicitária que havia ganho o Brasil. Realmente ele não sabia de nada, DE NADA! Pobre homem bom. 

     Pensou; “Pois bem,  eu não vim aqui pra dar IBOPE pra mim mesmo. Tenho que aproveitar que esta parte de cima está em obras e sem trânsito. Minha hora de fato chegou.” Olhou pra baixo e suas pernas gelaram. Um arrepio que ocorria até mesmo em todo o couro cabeludo lhe foi pungente naquela hora. 
     Não passavam lá muitos carros àquela hora da manhã, mas os poucos que passavam corriam assustadoramente rápidos. A sensação de pânico e tensão era sobremaneira visível no pobre homem desiludido, mas, de repente, tudo mudou. Uma frieza estranha o tomou, de modo que as respostas biológicas provocadas pelo medo cessaram. Suas pernas pararam de tremer e findou-se o frio na barriga. Uma "inexplicável" indiferença invadiu Horácio naquele instante e ele subiu sem dificuldade nenhuma no parapeito não tendo mais receio da mortífera queda. Tudo seria rápido. Eram aproximadamente 05h30min da manhã e ele tinha o objetivo de pular rápido para evitar aglomerações. Mas, ainda que aparecessem as pessoas, seria inútil. Sua sinistra obstinação não daria margem nem ao melhor negociador do mundo. Nada o convenceria. Mas, de fato, ele queria concretizar logo seu plano. A vida já lhe era indigesta demais àquela altura.

     Era chegada a hora. Horácio sentiu o horror do momento, mas, não impressionou-se consigo. Tentou uma última vez, como recurso extremo de sua quase inexpressiva vontade de viver, condicionar-se a não se enraivecer com Talita e Celso, sobretudo com este, mas foi inútil. O rancor e a inconformidade eram tamanhos, que a frieza e indiferença assumiram de uma vez por todas sua alma por completo. Não havia mais volta dali pra frente.
      Fechou os olhos, esvaziou os pensamentos e já ia deixando-se cair. Entretanto, neste momento, algo o freou de deixar a gravidade agir inteiramente sobre seu corpo e fez seus pés grudarem no parapeito, fazendo com que seu corpo se desequilibrasse, mas, conseguiu manter-se de pé.

    "Ué!" Ele mesmo não entendeu absolutamente nada. "Como pode isso!?"  Ele não sentira mais hesitação, então, porque mesmo ainda manteve-se ali em cima? Sentiu a perda do controle dos próprios movimentos, mas, ao mesmo tempo, não sentia que algo o prendia. no mínimo estranho. 
      Afinal de contas, o que o segurou no alto daquele maldito viaduto naquele momento? De repente, Horácio teve uma visão.

     Sentia que estava em pé ali, corporeamente, no parapeito do viaduto, mas, ao mesmo tempo, foi levado a um lugar estranho, uma sala não muito grande de paredes brancas pintadas grosseiramente de branco, com pouca luz e cheiro de flores baratas, e um monte de gente em pé e outros sentados. Não dava pra distinguir muito bem quem eram, nem onde exatamente ele “estava”. Sua visão estava turva a princípio, mas logo foi ficando nítida, como um fade, e ele teve a pitoresca conclusão de que estava numa.. "Não pode ser!" exclamou, numa capela funerária! Havia um caixão no meio, e uma coroa em cima; flores brancas e um dizer genérico e tosco como "Saudades eternas." E todas as pessoas eram conhecidas e/ou familiares! 
     Horário estremeceu naquele momento. Pensou; “Teria sido eu transladado ao meu próprio funeral antes mesmo de morrer?”. Os calafrios o atormentaram por breve instante, mas, ele pensou: “E daí! Não tenho mais prazer com nada mesmo. Já que estou aqui no dia final de minha pobre vida, vamos ver então como está sendo o “luto” dos meus.” – Riu-se ironicamente.

    Olhou a sua volta e começou por quem estava lá na frente; seu pai e sua mãe. Estavam com uma expressão de não-resolução no rosto e os olhos muito vagos e distantes. Coitados. Nunca foram maus, mas também, nunca foram muito bons. Sempre minaram os sonhos de Horácio. Sempre tentaram impor seus desejos sobre os do filho, de uma forma não razoável. Isto provocou feridas irreparáveis em Horácio dificultando muito sua vida. Ao contemplá-los ali, não sentiu raiva deles. Também não foi indiferente, mas, de fato, não se importou demais. Já fazia uns bons três anos que não se falavam direito também. Celso é que era o único elo que ainda estabelecia comunicação entre Horácio e os pais. Ele era também um filho deles, por sempre estar presente na vida de Horácio. Um dia Celso disse a Horácio que seus pais haviam dito; “Celso meu filho, fala pro Horácio trazer o Juquinha pra passar uma temporada com a gente.” Horácio respondeu a Celso na ocasião: “Cara, vê se eu vou fazer isso com meu filho! Ele vai pra lá querendo ser músico e volta com ideia de ser economista.” Horácio não queria que os avós de Juquinha minassem seus sonhos como tinham feito com ele.

    Continuou a examinar as pessoas e viu a mãe de Celso inconsolável. “Tadinha da Tia Inês. Não queria fazer ela sofrer assim.” – pensou. Ela sempre fora muito boazinha. Não sabia conversar, não sabia dar conselhos, mas tinha bom coração. Ao lado dela, surpreendentemente estava o canalha do Geraldo, o pai de Celso. Surpreendentemente sim, pois, ele os havia abandonado há muito tempo e agora estava ali abraçado com ela, do nada. Horácio não entendeu, mas seguiu com o exame dos presentes. 
    A figura de Celso permeava a tal visão que Horácio estava tendo enquanto estava de pé no parapeito de um alto viaduto. Tudo que aparecia na visão de Horácio o fazia relacionar com o “ex-amigo”. Estranho. Mas não surpreendente. De fato, Celso tinha direta relação com a morte de Horácio. Ficou então a pensar sobre a ausência de seu "companheiro" no velório. “Otário! Viado!” – Horácio pensou. Mas pelo menos não era fingido como Talita que estava a soluçar ao lado de Tia Inês (ele não poderia presumir que ela estivesse ao lado de seus pais. Eles a odiavam e um dia amaldiçoaram ela numa briga por motivo banal). “Desgraçada! Vagabunda! Eu te amava tanto! Eu vivia em sua função..” Horácio chorou escondendo a face com a mão esquerda. Logo após, explosivamente exclamou em fúria: “DANE-SE VOCÊ E JOBSON! Se merecem os dois dissimulados.” Olhou seus vizinhos e viu os da casa da frente que sabiam do que ocorria entre Talita e Celso e nunca tiveram coragem de contar ou pelo menos alertar. Cuspiu na cara deles expressando seu repúdio. Pena que eles não sentiram a frieza da saliva de Horácio, pois era apenas uma visão. Horácio era uma fantasma ali. O padre que estava celebrando a cerimônia era outro desafeto de Horácio. Quantas vezes ouviu celso confessar que estava tendo um caso com a mulher do melhor amigo e não fez nem falou nada. Nada! Só dizia com seu sotaque estrangeiro de país indefinível; “Está perdoado meu filho.” Horácio era puro ódio naquele momento. Olhou a todos os presentes de uma forma geral e sentiu nojo da própria existência, que já era duvidosa e paradoxal naquela hora.

    Chegara o tórrido momento de encarar o próprio destino. O caixão estava lá. O imponente e envernizado paletó de madeira não tinha sido um incômodo para Horácio até o presente momento, mas, agora, concebida a ideia de se ver morto, o caixão passou a aterrorizá-lo. Horácio não soube definir ao certo qual seria sua reação ao ver o próprio corpo gélido deitado sobre o artefato funerário. Horácio começou a pensar como era enfadonho o trabalho do construtor de caixões e de como ele tem que ser um eterno negligente com a problemática da morte. "Isso não é coisa para humanos. Esses caras têm que ser androides sem sentimento algum." pensou Horácio acerca dos marceneiros funerários.
      Horácio hesitou em se ver morto. Que coisa estranha! Por um momento refletiu se antes de morrer, todos eram transladados para alguma situação envolvendo a própria morte como ele estava sendo. Quem sabe, talvez. Mas é certo que todos nós temos o direito de controlar certos setores da vida. Outros, nos são eternas surpresas. A própria morte por vezes é uma surpresa. Não a de Horácio.

    Ele, depois de muito hesitar problematizando sobremaneira o encontro funesto de si mesmo, resolveu ir até o seu caixão e examinar a própria face mórbida. Queria fazer uma leitura da sua expressão. Quem sabe sondar qual teria sido sua última sensação antes de fechar pra sempre os olhos.
    Seus passos em direção ao caixote sinistro eram lentos, mecânicos, tortuosos, depressivos, mas constantes. Foi chegando cada vez mais perto, avistando mais nitidamente as flores brancas que lhe davam uma ternura que ele sempre quis ter em vida. Foi perpassando as flores que juntas formavam um golpe de vista quase impecável, mas, havia alguma coisa errada. O arranjo estava reto. "Que estranho!" pensou. O abdômen de Horácio era globoso desde a adolescência. Continuou subindo o olhar, devagar, ignorando este fato, como se pudesse observar todo o corpo (se estivesse à mostra), mas não o rosto. O rosto não. O rosto pálido e sem vida seria uma realidade aterrorizadora. Seus olhos cerrados e sua boca roxa com certeza provocariam uma sensação horrível. Olhou pra baixo, suou frio, tremeu, mas, respirou fundo e olhou para o rosto. 
    Suas pernas gelaram (muito mais do que no primeiro momento que ele chegou à beira do viaduto), seu coração acelerou, a tremedeira era geral, da cabeça aos pés. Não porque estava se vendo morto, mas porque ERA CELSO QUE ESTAVA NO CAIXÃO!

    Sim! Era Celso! Aquele não era o seu próprio velório, mas o velório de seu amigo. “Mas, como pode ser! Eu pensei que...” Horácio não sabia explicar nem quantizar o tamanho de sua frustração. O que sentir naquele momento? Tristeza? - grande novidade! Alegria? - por não ser aquele seu velório? mas, Horácio planejava a pouco suicidar-se. Indiferença? – Horácio até almejou a indiferença sentida quando estava lúcido em cima do parapeito, mas, frustrou-se duplamente ali, por que, gradativamente, um sentimento diferente invadia-lhe a alma naquele momento. Foi então que, como num turbilhão, como uma enxurrada, vieram as lembranças dele e de Celso. Lembrou de quando eram coleguinhas de jardim de infância, quando faziam bagunça juntos dentro de sala de aula, quando faziam dupla de ataque imbatível na escolinha de futebol do seu Nino, dos muitos churrascos celebrados, das aventuras de enguiçamento de carro em lugares inóspitos, das algazarras no ensino médio e na faculdade, do primeiro salário que os dois foram juntinhos no banco pra sacarem cada um o seu, e muitas outras coisas boas, EXCELENTES, MARAVILHOSAS que só uma boa amizade como aquela poderia proporcionar a alguém. Horácio chorou, chorou demais! Soluçou e abraçou o caixão.

    “Meu grande amigo, companheiro de todas as horas! Você me deu um desgosto em vida, mas que importa?! Agora você está gelado em um caixão, e não posso mais tê-lo comigo! Foi tremendamente errado o que você e Talita fizeram comigo, mas, tenho certeza que você se arrependeu disso. Se não fosse assim, não teria ido se confessar com o padre como fiquei sabendo. Agora vejo que de nada adianta o rancor na vida homem. Ele não anula o valor de quem você ama, mesmo que essa pessoa aja errado com você e tal.. E agora, você não tem mais vida pra eu te perdoar e esse fardo eu carregarei pra sempre, tudo culpa de um rancor idiota! Como eu queria que você estivesse vivo pra eu te dar um abraço! Mas.. HEI!” Horácio lembrou..

    Por certo, aquilo se tratava de uma visão. "não era real"! “Era só pra me mostrar que não é bom que eu tire a minha própria vida e que Celso, apesar de tudo é sim um bom amigo que não quero perder!” Horácio, julgando ser esta a lição que deveria aprender, renovou-se, respirando aliviado, como quando se percebe que um pesadelo é apenas um pesadelo, mas ainda mantém-se no pesadelo (isto acontece, sabemos que.)

    O pobre homem em pé no parapeito do viaduto voltou a si. Terminara a visão. Olhou para baixo e ficou tonto. Quase caiu, o que provocou acelerada arritmia nele, mas restabeleceu-se e se reequilibrou. Sacudiu a cabeça e olhou para o horizonte. Ele estava experimentando agora um novo estágio de compreensão da vida. Esta experiência, talvez psíquica, talvez transcendental, aquietou os fantasmas que Horácio dera voz. Ele agora, ao ver os primeiros raios de sol ao longe, desejava não mais pular dali, mas, descer daquele viaduto e ir ao encontro de Celso e dizer-lhe que não se importava com o que tinha acontecido e que o ia perdoar. E agradecê-lo porque mesmo sem saber, ele o tinha salvado a vida. A amizade deles tinha salvado a vida de Horácio. Com Talita ele se acertava depois, também desejava perdoá-la. Ele a amava, assim como amava Celso.

    Horácio de repente começou a achar graça de si mesmo. “Pobre homem louco que sou eu!” Começou a descer colocando para dentro do calçamento primeiramente a perna direita, entretanto, nesse instante, foi surpreendido por um fortíssimo vento de outono, que infelizmente o desequilibrou e o fez cair, sendo inútil sua luta pra se segurar no parapeito. Era uma boa altura. A sobrevivência era deveras improvável. 
      A queda foi brusca e desajeitada, mas Horácio não se chocou contra o chão. Chocou-se contra um pobre ciclista que passava - como trivialmente fazia - exatamente ali, em baixo do viaduto naquele momento. Horácio, apesar de ferir-se muito, não morreu, deixando este trágico encargo para o ciclista que tomou uma joelhada de Horácio (com força gravitacional amplificada devido à queda) diretamente no crânio. Não houve chance para ele. Amorteceu a queda de Horácio e sacrificou involuntariamente a vida para salvá-lo.

    Horácio ofegava caído no chão. Não se importava diretamente com a dor, apesar de esta ser insuportável. Seu corpo agora tinha vários ossos quebrados pela queda e hemorragias mil, mas, suas avarias não tinham sido mortais. Sua mente estava em completo paradoxo! Tentou organizar os fatos pra quem sabe traçar o desencadeamento dos acontecimentos. “Eu, há pouco, queria me matar. Tive uma visão que me fez mudar de ideia. Quando eu resolvo descer do parapeito e não fazer esta besteira, um vento forte vem e me derruba, mas não me mata, mata um ciclista que passava em baixo exatamente na hora da queda. É SÉRIO ISSO?!” Horácio estava inquieto, estressado, em meio à uma tensão extrema. Mas, o que deixou mesmo Horácio em total estado de choque agonizando em desespero profundo, foi ter descoberto ao se arrastar dificultosamente para o lado que o ciclista era Celso.

   


quarta-feira, 2 de abril de 2014

O Show

Não quero mais saber de tomates!
Nem de beterrabas, 
Nem de cadeiras.
Não quero mais saber de críticas,
Nem de feedback,
Nem de manchetes.
Chega de mendigar aceitação, 
Chega de panfletarismo.
Adesão eu não mais peço.
Vou fazer um show pra ninguém
E vai ser o maior sucesso!


segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Robério e o homem-sem-cabeça

       A lata de cerveja caiu no chão e Robério segurava a borracha tremulamente. A mulher dele gritara lá de dentro; "Anda logo com essa calçada fio duma égua! To precisano dá banho no cachorro!" Porém, todo barulho e estardalhaço paralelo do mundo naquele momento não era palho pra desviar a atenção do fato mais estranho do dia; de repente, na hora mais mágica da tarde, no refrão do forró, no clímax de "Malhação", eis que surge no céu uma figura um tanto incomum; de repente pousa em frente a calçada que Robério estava limpando - a saber a calçada de sua própria casa - um homem sem cabeça a bordo de uma vassoura. "Um homem sem cabeça a bordo de uma vassoura"? Sim! Um homem sem cabeça a bordo de uma vassoura! Robério também se questionou da mesma forma para acreditar de verdade.
          O tal ser descabeçado desceu da vassoura que pairava no ar e disse:

- Tenho que mandar para a revisão mas dá pra voar ainda...

Robério assustado com a alta carga de falta de nexo retrucou:

- Como uma vassoura fala sem corpo numa cabeça?

- O que disse nobre cidadão?

          O cavalheiro da vassoura perguntou.

- Quero dizer.. Ééé.. Como uma cabeça fala sem vassoura num corpo?

- Presumo que na verdade você deve estar indagando-se de como meu corpo, ou melhor, "eu" falo sem cabeça, não é isso caro amigo?

-Sim, desculpe. Eu me embaralhei todo. Acho que é porque bebi demasiado e..

- De fato você bebeu tanto que consigo sentir seu bafo secador de mato de longe. Mas o que está testemunhando é real. Não é uma alucinação, nem efeito de seu etilismo exagerado.

- Hei, quem é você pra dizer o quanto eu devo beber ou não?! Acho que você está com inveja porque queria beber também mas "não está com cabeça pra isso". HAHAHAHAHA! 

 - De modo que eu não bebo Robério, não porque não tenho cabeça. Você não tem dinheiro mas vive gastando por aí! Tem gente que não tem mais pulmão e fuma, não tem mais joelho e joga bola. O impulso não é orgânico nem fisiológico. 

- Você fala muito difícil.

- Oh, me desculpe caro Robério, é que eu estava voando sobre este bairro e lá de cima senti compaixão de você.

    Robério até então estava tentando ser amistoso, mesmo estando impressionado com o ser fantástico à sua frente, mas ele se sentiu diminuído quando o homem sem cabeça disse que sentia compaixão dele. Ora essa! Robério é que deveria ter compaixão de uma pessoa que não tinha cabeça. 

- Compaixão de mim? Rapaz.. eu não tenho mais medo de você hein! Te quebro aqui agora mesmo, pego essa tua vassoura de mercearia e quebro na sua cab... - Robério caiu em si - [...] e... te quebro todo! Você já conseguiu me irritar, e olha que não sou impaciente. Olha só o que acontece nesse bairro! Tem pessoas de bem aqui cara, senhoras religiosas e distintas, famílias tradicionais, crianças brincando na pracinha... Como é que você, uma pessoa sem cabeça, sai voando por aí com uma vassoura e resolve pousar logo aqui neste bairro tradicional nessa hora? 

- Sei que responder com perguntas é desleal mas mesmo assim responda-me Robério; Como é que você um homem com cabeça e sem a ajuda de uma vassoura tem a coragem de gastar água a tarde inteira somente pra lavar dois metros de calçada?

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

O Segredo da Sabedoria

    Eu não aguentava mais tanto silêncio. Já tinha acordado há tempos, e todo mundo em minha casa ainda dormia. Até meu pai que acordava cedo. Era assim todo dia, mas naquele dia estava demais. Já passava das cinco e meia da manhã e nada! O povo da minha aldeia acordava muito cedo. Todos levantavam ao ouvir o soar da trombeta ancestral. Tocada por um dos homens mais velhos da aldeia, o senhor Benedictus. Dizia a lenda que ele quando jovem, lutara na Primeira Grande Guerra e numa certa feita, sendo ele soldado de primeira classe, ficara responsável pela segurança de um cofre que continha muitos documentos sigilosos do nosso país que se caíssem nas mãos do inimigo, toda a nação estaria arruinada. Seus amigos queriam ir farrear aproveitando a trégua. Ele recusou ir festejar. O convescote seria numa taverna da aldeia vizinha. Ele lhes disse que eles podiam ir aproveitando a ausência dos superiores e ficar a noite inteira pois ele ficaria de guarda. Seus amigos foram farrear, confiando a segurança do cofre somente a ele, pois era um bom soldado; forte, valente e um sentinela que “nunca dormia”. Certa hora da madrugada o sono o venceu, e neste momento, exatamente neste momento, um espião que vigiava o acampamento de longe roubou o cofre. Ele e seus amigos foram punidos e expulsos da corporação. Desde então, dizia-se que ele não dormia e ficava atônito a esperar logo o dia começar a amanhecer para que as pessoas acordassem logo. De fato nunca o vi dormir. Ele andava sempre com a trombeta feita de chifre de carneiro que rezava uma outra lenda, tinha pertencido ao primeiro homem que tinha chegado ao lugar onde ficava nossa Aldeia.
    É bem verdade que tudo e todos em nossa Aldeia tinham uma lenda, ou uma história fantasiosa ou não, que explicava nossa maneira de existir individualmente e que nos ajudava a consolidar nossa coletividade. Contava-se o relato que este homem era um pastor de ovelhas que distanciando-se demais do seu local de pastoreio procurando uma ovelha desgarrada, não achou o caminho de volta. Ficou desolado e triste por um tempo pois se perdeu da sua comitiva. Diz a história que este homem, cuja procedência nunca foi sabida, conhecido apenas por “Cláreo”, avistou em cima da montanha, cuja nossa Aldeia fica no pé, a ovelha que estava procurando. Começou a subir a montanha atrás do pobre animal. Quando já estava um pouco no alto, avistou sua comitiva de longe. Naquele instante ele ficou dividido entre descer o que já tinha subido e ir atrás da sua comitiva deixando a ovelha perecer na montanha ou ir ao encontro do indefeso animal e o salvar. Pensando então, ele concluiu que seria mais justo salvar o animal, pois o mesmo não poderia sobreviver sozinho num ambiente tão hostil. Planejou logo após salvá-la, pernoitar ao pé da montanha e no outro dia iniciar sua jornada atrás da comitiva. Diz a história que quanto mais ele subia, mais a ovelha subia também, parecendo querer o levar ao cume do monte. Ele não desistiu, continuou a subir mesmo muito cansado e sem entender o propósito de tudo aquilo. Chegando ao cume do monte ele pegou a ovelha e quando estava prestes a começar a descida algo o chamou a atenção. Diz-se apenas que ele se virou para trás e ali naquele momento se tornou sábio. E edificou naquele lugar uma pequenina casa e selou dentro dela o segredo da sabedoria. Era uma velha “lorota” contada em nossa Aldeia. Eu escutava isso desde a meninice. Era o tipo de história que quando se começa a contar, quase se dorme pois todos já estão cansados de ouvir. Pra mim essa história era pura cannabice e a tal casinha, se existisse ou existiu, talvez fosse apenas um abrigozinho feito há muitos anos atrás por algum grupo de caçadores ou alpinistas que já não estava mais de pé por causa do vento ou sei lá! Mas, como disse há pouco, tudo em nossa Aldeia tinha uma explicação lógica, elucidada através destas histórias fantasiosas que apesar de banais, nos eram familiares. Esta mesma história se entrelaçava com outras e formava a grande teia de explicação das coisas da Aldeia da Luz.
    O motivo pelo qual todos acordavam cedo era o culto litúrgico de apreciação do nascer do sol. Era costume da nossa aldeia que todos acordassem para ver o sol nascer juntos. E esse costume era levado tão a sério que dizia-se que se toda a aldeia não estivesse junta olhando para o céu na hora que o sol começa a nascer, ele não sairia de trás das montanhas e nunca mais nasceria. Bom, eu sabia que o sol sempre nascia, independente se haviam pessoas olhando ou não, mas, nunca ousei contrariar os costumes e crenças da aldeia, pois estava inserido naquele contexto, eu era parte daquilo. Seria como negar a mim mesmo. E naquela manhã, eu (apesar de “ter” certeza que o sol nasceria) estava preocupado com minha família porque todos ainda dormiam e o azul marinho do céu estava ficando cada vez mais claro. Foi até que tive que recorrer a um recurso extremo. Concluí que meus pais ainda dormiam pois de alguma forma estranha não estavam ouvindo a trombeta ancestral do senhor Benedictus. Então, fui até ele interrompendo um de seus longos toques puxando um de seus braços, tirando a trombeta da sua boca provocando um momentâneo mau-humor nele que fez uma cara de irritação e espanto como quem dizia; “Nunca ninguém interrompeu um de meus toques na minha trombeta, como ousa fazer isso?”, mas a feição logo se transformou serena tal como era e me perguntou;

 - Posso ajudar Lucius?

- Sim Sr. Benedictus. Já passa das cinco e vinte da manhã e meus pais não acordam para ver o sol, penso que se talvez o senhor fosse em minha casa tocar a trombeta eles poderiam ouvir melhor.

    Essa era uma das práticas em nossos códigos de conduta. Nunca, a não ser em caso de emergência, uma pessoa poderia ser acordada por outra. Se não levantassem por conta própria, somente a trombeta ancestral poderia acordá-los. Mesmo em casos extremos em que precisássemos acordar alguém de seu sono, deveríamos mesmo assim, nos esforçarmos para chamar o Sr. Benedictus e ele prontamente viria pra acordar a pessoa (e mais a Aldeia inteira).
    Dizia-se pelos cantos da aldeia que o Sr. Benedictus era um guardião que ficava entre o reino da morte e da vida. E que por este motivo, era um homem feliz e triste ao mesmo tempo. Feliz por que nunca adormecia e estava “sempre” atento, mas triste, por que a fartura de disposição e pensamentos eram-lhe por vezes agonizantes. Diziam até que o Sr. Benedictus podia ressuscitar uma pessoa do sono da morte se quisesse, mas, isso era mais uma “lenda” (mas bem que eu já senti vontade de pedir a ele pra trazer de volta um gato malhado por nome de Coalhada. Gostava dele por que eu andava com ele pelas vielas da aldeia e as garotas vinham bajulá-lo e eu aproveitava, mas, eu não podia me prestar ao papel de doente e pedir a um cara que nunca dorme, que toca uma trombeta velha que acorda a Via Láctea inteira pra ressuscitar um gato meu que tinha morrido).
    O Sr. Benedictus sorriu pra mim e disse;

- Vamos lá então pequeno Lucius! Afinal, o que será de nós se o sol não nascer mais não é mesmo?

    Eu e ele fomos correndo, e enquanto isso, imagine uma música dançante medieval como trilha sonora. Então, chegamos à minha casa.
    O azul do final do amanhecer cada vez mais era mais claro, e o Sr. Benedictus entrou na sala de visitas da minha casa, fechou os olhos como de costume, ergueu para o alto o Shofar e soou longamente o instrumento. Depois do longo toque que o deixara sem fôlego (seus pulmões não aguentavam muito mais), eu e ele olhávamos para a porta do quarto dos meus pais e não se ouvia barulho de maçaneta, nem tampouco ruídos internos. O Sr. Benedictus de repente olhou pra mim com uma cara de morte, como se falasse: “Não quero te enganar não meu amigo, mas isso tá com cara de óbito.” Eu fiquei impaciente. Comecei a lacrimejar pois meus pais não se manifestavam.
    Num ato desesperado, peguei da mão do Sr. Benedictus a trombeta, levei a boca e tentei tocar como ele (não se importando com o cheiro de carniça da saliva velha). Não saiu muita coisa além de um som parecendo um bode com asma. Eu ajoelhei chorando, amparado pelo Sr. Benedictus que pegou pacientemente a trombeta ancestral no chão jogada por mim. Foi nesse momento que a porta se abriu abruptamente e meus pais saíram, enrolados no lençol, sem dar importância nenhuma pra nós, e correndo muito rapidamente, subiram no telhado de nossa casa nos chamando depois para subir também e meu pai disse:

- Venham logo! Se o sol não nascer mais por causa de vocês dois eu mato vocês e uso suas peles para me aquecer do frio eterno.

    Olhei para o Sr. Benedictus que sorria para mim e corremos para o telhado, de onde quase que automaticamente já avistamos os primeiros raios de sol.
     Depois do nascer do sol e da efêmera euforia da Aldeia da Luz, fui pra escola, triste, chateado, pois era um martírio pra mim ir estudar.
     Eu não entendia as matérias e todos caçoavam de mim. Eu sabia das minhas limitações, mas também não precisava ninguém achar que precisava me fazer plenamente consciente disso o tempo inteiro! As meninas da sala nem olhavam pra mim, “O Burro!”, que nunca decorara a tabuada e nunca aprendera a fazer contas de dividir com mais de 2 números;  o menino cujas tarefas vinham borradas até depois de velho, que lia como um dislexo míope. Emfim, se eu não fosse a escola meus pais esquentavam minha bunda e ainda por cima me faziam trabalhar em casa. Parece que a criança pode fazer tudo de ruim, ser egoísta, ser calculista, bullinador, fumar droga e matar animais indefesos, mas se estiver na escola, está tudo bem!
    Apesar de tudo isso, eu me sentia especial. Sabia que tinha um potencial diferente, e que de alguma forma, todos um dia ouviriam falar de mim pela minha proeminência. Não era difícil qualquer um (que não fosse da Aldeia da Luz) perceber que aquilo não era pra mim. Eu sabia que eu tinha potencial e que eu não precisava de cadernos, livros e notas pra ser inteligentemente genial.  

    A sala era grande, branca e tinha uma luz central super brilhante que nunca se apagava. Em cima do quadro negro pintado na própria parede, havia um quadro com o que acreditava-se ser o retrato do Primeiro Iluminado, o Mestre Cláreo. À primeira vista, aquele ambiente parecia ser bastante celestial mesmo, mas quem acompanhasse de perto as aulas e as condutas dos professores, funcionários e alunos da única escola da Aldeia da Luz, - construída em seu ponto mais elevado -  abandonava essa impressão e enojava-se com certeza. A verdadeira sabedoria era suprimida pela busca desenfreada por resultados e notas. Ah! Não aguento mais sentir náusea.
    Naquele dia, por volta das 09:35 da manhã, uma coisa me chamou a atenção na montanha. Olhei pra ela tentando momentaneamente desviar meu olhar e minha mente da horripilante, tediosa e chatíssima aula de álgebra e avistei uma coisa incomum; uma ovelha! A princípio não esbocei tanta admiração pois, vai saber como e porque uma ovelha apareceu no monte. Tentei voltar minha atenção para a aula, mas aquilo era inquietante demais. Ninguém criava ovelhas na Aldeia da Luz, sendo este animal, somente parte do imaginário mitológico da Aldeia. E sendo eu burro, de onde tirei essa palavra? O caro amigo leitor entenderá.
    Eu pensei por um momento em chamar a professora e atentar à classe aquele fato, mas a Senhorita Lucinda era tão rígida que se eu a chamasse pra falar algo que não fosse essencialmente matemático eu correria sérios riscos físicos e sociológicos. Então perguntei a Luzia, minha coleguinha dentuça e magrela – a única que me dava atenção, talvez porque também fosse desprovida de inteligência (mas nada comparado a mim) – se ela estava vendo a ovelhinha na montanha olhando pra nós. Ela olhou pra mim e de sua boca escorreu um fio fino de saliva que ela sugou de volta, olhou pra montanha, olhou pra mim de novo e disse:

- Você além de burro é doido?

    Eu fiquei perplexo no momento. Quis socar a cara dela, mas não o fiz porque tinha esperança dela futuramente ficar bonita e quem sabe pegar ela. Percebendo eu que ela não avistava a ovelha, nem com a ajuda do meu braço apontando, resolvi tentar me convencer de que estava vendo uma miragem. Mas foi ineficaz. A ovelhinha ficava me encarando. Andava pra lá e pra cá na montanha, comia uns capinzinhos e tornava a ficar me encarando.
     Aquilo estava começando a ficar agonizante, pois eu via os meus coleguinhas olharem para a montanha, direcionarem o olhar pro mesmo lugar em que a ovelhinha estava e nem sinal de que estavam vendo alguma coisa. Foi neste momento que eu pensei: “Não pode ser verdade! Será que só eu estou vendo a ovelha?” Me belisquei pra ver se estava sonhando, esfreguei os olhos com veemente força, logo depois deles se desturvarem, a ovelha estava lá a me encarar, ruminando e espantando moscas com a orelha. Parecia que ela estava me chamando, querendo me dizer alguma coisa.
    Cheguei a um momento decisivo. Depois daquilo minha mente não repousava mais dentro daquela sala (mesmo em dias normais isso não acontecia). Então, resolvi revolucionariamente sair no meio da aula e ir na montanha! Eu tinha que ir atrás da ovelha!
    As lendas sobre a história da Aldeia nesse momento vieram com um turbilhão. Lembrei de Cláreo, lembrei da casinha da montanha, lembrei do segredo da sabedoria... Lembrei também da chacota constante sobre o meu nível intelectual, de toda a hipocrisia da escola e de todos os meus companheiros aldeões. Decidi que iria atrás da ovelha, no intuito de obter honra ou pelo menos satisfação pessoal e paz interior já que a minha imagem seria sempre a de um boçal mesmo. Deixei pra trás uma sala inteira e uma professora carrancuda bradando ameaças de reprovação e maledicências. Cheguei até o portão da escola e lá estava o porteiro totalmente distraído e distante do portão propriamente dito. Quando vi aquela cena, sem mais demora esbocei uma escapada fenomenal e silenciosa. Quando dei o primeiro passo da corrida, eis que uma mão grossa segurou o meu braço.

- LUCIUS! ONDE VOCÊ PENSA QUE VAI?!

- Eu vou atrás da ovelha na montanha Dona Luciane!

    Dona Luciane era a diretora da escola, que percebendo o escândalo da professora de Álgebra quando eu saí da sala, veio ver do que se tratava.

- Ovelha? Na montanha?

-Sim! Olha ela lá, me encarando!

    Apontei na direção de onde a ovelha “estava”. Ela, não enxergando nada, ficou mais enraivecida ainda, pensando que eu estava de abuso.

- GAROTO! Pare de ficar de historinha! Não tem nenhuma ovelha naquela montanha e você vai voltar pra sala agora!

- Mas Dona Luciane, eu não quero voltar pra sala, eu quero ir atrás da ovelha!

- E você insiste nessa brincadeira jocosa de que tem uma ovelha na montanha... Vai já pra sala garoto!

- Mas...

- “Mas...” nada! Vai agora pra sala e pare de ficar inventando coisas só pra não assistir a aula de álgebra. Já não basta tirar frequentemente zero, ainda tem que ficar matando aula? Ah, faça-me o favor!

    Eu, olhei pra ovelha, ela continuava a me encarar e desta vez parecia mais inquieta. Mas, percebi que, não teria jeito. Teria que voltar praquele inferno quadrado didático. Abaixei a cabeça e esbocei os primeiros penosos passos de volta para a sala. Foi quando de repente, como num passe de mágica, apareceu por trás de nós o Sr. Benedictus. E disse:

- Vim em nome dos pais de Lucius solicitar sua liberação do restante das aulas de hoje.

    Luciane virou-se e olhou o mítico homem por cima dos óculos, pegou um papel que ele segurava na mão, autorizando ele a me pegar na escola mais cedo com a assinatura dos meus pais. Eu percebi que a assinatura era falsa, mas só eu poderia perceber porque o ponto que meu pai colocava no final do seu primeiro nome “Lucélio” era normalmente mais longe do “o” mas, outra pessoa não perceberia. Logo, vi que Benedictus havia, por alguma razão, falsificado ela para me tirar da escola. Mesmo que o Sr. Benedictus não tivesse me libertado pra me permitir fazer o que eu estava pensando, me livrar da escola era minha necessidade primária naquele momento. Se fosse outro seu propósito (que não o de me permitir ir atrás da ovelha na montanha), eu me livraria facilmente das mãos do Sr. Benedictus que já era velho logo assim que dobrássemos a primeira viela saindo da escola e correria em direção a montanha.
   Luciane olhou pra mim, olhou para o Sr. Benedictus que a fitava incisivamente e me disse:

- Lucius, pode ir. Se seus pais estão autorizando e o estimado Sr. Benedictus o veio buscar, não há problema algum.

    Eu pulei de alegria por dentro! Fui ao encontro do Sr. Benedictus que sorria para mim, segurei sua mão e virei as costas e saí junto com ele da escola. Fomos dando alguns passos para longe da escola, na direção oposta à montanha. Eu, olhava para trás, para ver a ovelha, e comecei a esboçar a escapada das mãos do Sr. Benedictus. Quando ele afrouxou um pouco os dedos e eu já ia sair correndo, ele me disse:

- Preciso lhe contar uma coisa a respeito do que está vendo na montanha.

    Eu olhei pra ele e percebi como num estalo, que ele também estava vendo a ovelha. Eu num descarrego de euforia disse:

- Poxa Sr. Benedictus! Como estou feliz ao saber que não sou o único que consegue ver a ovelha na montanha!

- Mas eu não estou vendo Lucius!

    Me frustrei momentaneamente.

- Diz a profecia Lucius, que um dia, “O Escolhido” avistará a ovelha na montanha, e somente ele a enxergará. E neste dia, ele seguirá a ovelha, que indicará o caminho para a casa da montanha. Chegando lá ele abrirá a porta da casa que somente ele saberá abrir e se tornará sábio, se tornará o Segundo Iluminado porque terá acesso ao segredo confinado lá por nosso patriarca, o Primeiro Iluminado, o grande mestre Cláreo. E O Escolhido libertará o mundo da ignorância, estabelecendo um novo tempo de sabedoria sobre a Terra.

    Eu fiquei estarrecido com aquela história! Não podia ser. Eu? “O Burro!”? Não podia ser. Fiquei a princípio desconfiado e perguntei ao Sr. Benedictus;

- Como eu nunca soube desta profecia? Como ela não está presente na Cartilha do Aldeão (era um livro que todos tinham que escrever a mão e depois encapá-lo para si próprio que continha todas as nossas lendas e histórias mitológicas) sendo um dos princípios da Aldeia da Luz, todo aldeão saber de cor todas as nossas lendas, histórias e mitologia?

- É simples Lucius. Essa profecia nunca poderia ser contada, pois todos a distorceriam, e possivelmente fariam muita chacota com a história, enganando os outros com falsas ovelhas de pano na montanha, e quem sabe comprando ovelhas de lugares distantes para colocar na montanha para profanar a profecia sagrada da Revelação do Segredo da Sabedoria. Por isso ela foi confidenciada somente a mim, Benedictus, pelo próprio Primeiro Iluminado, que me fez jurar por toda a luz que existe que não contaria essa profecia a ninguém, e mais ainda, que seria responsável por perceber e observar quando aconteceria o despertamento dO Escolhido e elucida-lo à respeito desse fato. Por este motivo, e só por este, eu nunca durmo! Eu tinha que estar atento e perceber o dia que alguém avistasse uma ovelha na montanha. E este dia chegou, eu reparei desde quando você começou a olhar para a montanha. Eu todos os dias observo os alunos da escola para ver se algum deles está avistando algo que os outros não vêem na montanha. O mestre Cláreo me disse que O Escolhido poderia sair de lá. Eu vi quando você mostrou à pequena Luzia algo na montanha e ela fez como que não estava vendo nada. Olhei para a montanha e não vi nada também, mas não pude deixar de perceber que você estava vendo algo que ninguém mais estava vendo no Monte Lucem. Quando te vi relatando o que estava vendo na montanha à senhorita Luciane, tive certeza de que eu tinha achado o escolhido. Corri pra minha cabana, falsifiquei aquela autorização e te libertei da escola, pra você não perder mais tempo nenhum e ir atrás da ovelha que você está vendo e seguir o seu destino! Vamos pequeno Lucius, vá, suba o monte e cumpra a profecia. Eu me comprazo em você. Vá agora!

    Eu, totalmente perplexo com aquela história, atônito ao perceber que tudo tinha muita coerência e que tudo agora fazia sentido, percebi que mesmo em minha ignorância eu tinha sido mesmo escolhido, já que realmente só eu via a ovelha e ainda tinha a bênção e a confirmação do Sr. Benedictus, o homem mais respeitado (e ao mesmo tempo zoado) da Aldeia.  Resolvi ir correndo para a montanha e cumprir o meu destino! Como eu estava feliz, e minhas forças apoderaram-se totalmente de mim naquele instante. Antes de começar a difícil escalada do Monte Lucem, disse ao Sr. Benedictus:

- Muito obrigado, Oh grande guardião da profecia suprema! Estarei feliz em lhe conceder muita graça logo depois que me tornar o maior sábio do mundo ao entrar na casa da montanha.

Ele agradeceu emocionado e me abraçou dizendo; 

- Tenho anos e anos de sono acumulado, mas ainda posso esperar pra ver o menino Lucius descer do monte transformado no grande sábio libertador da Terra do império da ignorância!

 As palavras maravilhosas do velho Benedictus foram pra mim um poderoso combustível e eu saí em disparada à montanha, olhando firmemente para a ovelha que já estava começando a subi-la e olhar pra mim alternadamente. Comecei a árdua escalada do Monte Lucem. Perseguia a ovelha, que subia a me indicar o caminho. Eu caía, escorregava, me machucava, mas não me importava, pois estava indo em direção à casa que continha o segredo da sabedoria! Eu naquele momento também já pensava no fim iminente de toda zombaria em cima de mim e de meu intelecto. Eles não fariam mais isso com o Grande Sábio Lucius! A ovelha ia me mostrando o caminho passando pelas pedras menos escorregadias e menos íngremes.
    A tarde já ia caindo e logo sobreveio a noite, negra noite. Eu não avistava mais a ovelha há um tempo. Fiquei desolado, com medo e atordoado. A ovelha sumira, eu não a via mais. Foi quando dei mais uns três passos para frente com máximo cuidado, pois não enxergava nada, e vi as luzes da aldeia lá em baixo. Entendi que onde eu estava era possivelmente o cume do monte. Foi quando de repente escutei um “BÉÉÉHHR!!” atrás de mim. Virei-me vagarosamente e vi, uma casinha totalmente iluminada por uma luz incandescente e em cima da casinha a ovelha, agora também iluminada! Eu pensei: “Oh! Que alegria! Encontrei a casa, ela é mesmo verídica!” Fui em direção a ela e a ovelha pulou por cima de mim e no ar transformou-se numa chave que caiu na minha mão. Eu agora, chegando perto da casa, fui envolto pela luz que emanava dela, e minhas vestes foram se transformando em brancas com listras douradas. Eu, cada vez mais estarrecido com aquela coisa fantástica, me dei por mim que era mesmo de fato O Escolhido. Não restava mais nenhuma dúvida! Eu não mais temia toda aquela cena espetacular. Eu guiei a chave que outrora era uma ovelha até a fechadura e escrito em Latim na chave estava; “LUMEN SCIENTIAE PARARI” (coloquei no tradutor do Google e depois ele me disse que isso significa: “Prepara-te para a luz do conhecimento."). Abri a porta da casa e lá dentro havia um altar infinitamente mais iluminado do que a própria casa em si. E em cima desse altar, cujo material não era nem identificável tamanha luminescência extraordinária! E flutuando em cima dele, um envelope de um papel branco reluzente com detalhes em dourado cujo brilho intermitia e fluía caudalosamente. Outros veios de luz saíam dele como se fosse ele o núcleo gerador de luz da casa e de todo o universo!
    Peguei o envelope e meus olhos doíam um pouco, mas, mais luz me envolveu e pareceu dar resistência aos meus olhos. Senti um poder no meu corpo incontrolável! Senti vontade de fazer como num filme desses de Hollywood e abrir os braços e explodir a casa e jogar um feixe de luz infinito no céu que rasgasse quinze galáxias ao meio. Foi o que eu fiz! Agora eu segurava o envelope para o céu que projetava uma luz que parecia cortar todo o universo! Ventos, raios, trovões, pedras da montanha voando em volta de mim! E eu, ante tudo aquilo, abri o envelope e um clarão quase me cegou, e a noite se transformou em dia naquele lugar tamanha luminescência irradiada do bilhete. E estava escrito neste bilhete uma frase transformadora e transcendental que mudou para sempre a história do meu viver! Com caligrafia angelical, no bilhete estava escrito assim;

“VÁ ESTUDAR!”

    

terça-feira, 17 de setembro de 2013

A felicidade mora ao lado...

A felicidade é um sentimento tão efêmero, ou fomos nós que a transformamos em algo assim?

Ás vezes, me pergunto porque quando temos menos dinheiro somos mais felizes? Na verdade, o problema é e não é o dinheiro. Quando temos uma vida simples me parece que temos menos ambições ou que estas são inalcançáveis e acabamos nos acostumando com o que temos e com quem somos. Então, deixamos de nos preocupar com as coisas fúteis, e nos tornamos livres para viver e ser felizes. Somos cercados de poucas pessoas, mas são aquelas que nos oferecem tudo o que tem, assim somos capazes de perceber o quanto somos amados. Não esperamos nada de ninguém e por isso não criamos expectativas. Conforme mais dinheiro arrecadamos, mais coisas desejamo e queremos. E os sonhos tão inalcançáveis parecem estar tão mais próximos de nossos dedos. Quanto mais temos, mais queremos e assim nunca nos sentimos satisfeitos com o que temos e com quem nós somos e menos felizes nos tornamos.... É por isso, que sempre achamos que o outro é mais abençoado do que nós. Na verdade, temos tudo o que precisamos para ser feliz, só precisamos olhar mais para dentro de nós, para coisas que não somos capazes de tocar e em vez de buscar como felicidade tudo o que se desfaz com o tempo.

Boa Noite. ^^