domingo, 19 de maio de 2013

O Jabuti

    Cedo, eu diria, pra estar num bar numa noite tão quente. Essa minha gente é mesmo meio doida. Mas não importa a hora. Se é seis e meia da tarde ou três da madruga, a loucura é sempre a mesma. E no Bar do Leônidas tinha gente tão ou mais doida que a minha galera o dia inteiro. Era um estabelecimento que não se enquadrava no estereótipo "lugar badalado da madrugada". As mesmas coisas que se vêem na Lapa depois da meia-noite, se viam lá ao meio-dia. E estávamos nós lá, depois de uma tarde virtuosa de aulas e mais aulas, com o objetivo de relaxar, beber um bocado, falar mal dos outros e contar vantagens. Como de costume, juntamos duas mesas, sem a ajuda de nenhum garçom pois os mesmos estavam sempre ocupados, rejeitando o máximo possível de tarefas que não as de servir de fato, devido ao altíssimo sobrecarregamento de mesas e clientes que tinham que atender. Nesse ponto, o Leônidas, uruguaio de olhos vermelhos, cabelos brancos e bigode farto era cruel com eles, apesar de ser muito bondoso e até meio bobo enquanto patrão. Mas ele limitava-se a ficar fazendo graça com todo e qualquer acontecimento no seu bar, quando muito, atendendo algum vendedor enquanto ficava no caixa. 
    Estávamos sentados fazia uns cinco minutos e ninguém falava muita coisa, só alguma coisa da aula, ou apontando os excessos de outro grupo que estava no bar. Até que Jairo resolveu tentar quebrar o gelo e falar: 
   - Gente, a Lucinda, nossa professora de filosofia, diz que tem trinta e cinco anos, mas ela não me engana não! Com aquelas rugas maracujentas e aquela pelanca do braço na hora do tchau, ela deve ser mais velha que o jabuti de Darwin!
Jairo era do tipo que falava coisas hilárias sem contexto algum. Um verdadeiro cômico. Inoportuno, mas não deixava de o ser. Todos riram do comentário de Jairo e confirmaram a hipótese. Manuela disse:
   - Ela foi quem descobriu o jabuti e comunicou Darwin!
Mariano falou:
   - Ela morava em Galápagos na época há muito tempo já! HAHAHAHA
Mariano era sempre o que mais ria. Tinha aquele riso fácil e caudaloso, mais engraçado que qualquer coisa engraçada. Sempre achei que pessoas assim se dão melhor na vida. Por isso eu apostava que dentre nós, do clube dos universitários descompenetrados, ele seria o mais bem-sucedido. Ele ria, mas ao mesmo tempo me fitava, interrompia rapidamente a graça e voltava a rir exageradamente, tremendo o corpo inteiro, dando tapas na mesa e babando. Mas ele parou com os excessos, e apesar de ainda estar com expressão de graça no rosto, me perguntou: 
   - Que foi Ronaldo? rsrsrsrs (ria-se um pouco ainda) porque tá sério?!
Eu, de fato estava sério, por um motivo; não sabia o que era um jabuti. Estava vendo todos rirem, com o comentário de Jairo, mas, como rir?! Eu não fazia idéia do que era um jabuti! E aí então, eu resolvi perguntar inocentemente:
   - Galera, o que é um "jabuti"?
Um silêncio estranho formou-se entre eles. E eu, me dando conta de que ia ser zoado, já estava num curtíssimo espaço de tempo/compreensão me sentindo desconfortável. Foi aí que de repente, puxados por Mariano, todos deram uma gargalhada que aparentava ter sido ensaiada por vinte anos todos os dias, só pra ser dada ali naquele momento. Eu fiquei olhando pra todos, sem entender o motivo da graça, me esforçando pra levar na esportiva  também. Quando, depois de uns quarenta segundos, diminuiu-se um pouco a risalhada, eu olhei pra Mariano e falei:
   - Mas cara, é sério. O que é um Jabuti? Me diz aí você Mariano!
Mariano falou:
   - Cara, um jabuti é uma planta carnívora natural da Antártida, muito usada como afrodisíaco por aí.
Eu falei na mais pura inocência:
   - Então Darwin tinha essa linha de pesquisas sexuais?
Todos riram mais ainda. Jairo disse:
   - É mentira do Mariano Ronaldo. hahahaha (meio rindo, meio sério) Um jabuti é uma fruta muito gostosa que inclusive tem um pé na casa da minha vó.
Manuela falou:
É verdade Ronaldo! Você nunca comeu doce de jabuti não?
Respondi:
   -Eu não. (virei-me pra Jairo) Po! Se eu pedir sua vó ela faz um pouco de doce de jabuti pra mim?
E mais uma vez todos riram, até não se aguentarem, e eu percebi que nem de longe um jabuti era uma fruta. Eu levantei enraivecido, e bradei eloquentemente aos meus colegas:
   - Será que é tão difícil alguém me dizer SEM sacanagem, o que é um jabuti?
Todos do bar me olharam essa hora, eu fiquei com vergonha, e sentei de novo, pedindo desculpas de maneira caricata à todos, e depois encurvando a cabeça. Todos riram, um pouco menos veementemente do que meus amigos e Manuela falou-me "amigavelmente":
   - Porque você não vai perguntar ao Leônidas? Ele saberá te dizer o que é um jabuti.
Eu estava indignado com o fato de meus amigos não terem me levado à sério. Poderia ficar ali apresentando essa minha queixa pra eles, mas a dúvida que ainda persistia, era tão mais forte que isso, que eu resolvi ir lá perguntar ao descontraído Leônidas que farreava com uma representante comercial de bebidas, "o que" de fato era um jabuti. 
    Cheguei um pouco tímido. Percebi que eles falavam um assunto nada importante, pedi licença, e falei:
   - Seu Leônidas, por gentileza, o senhor poderia me dizer o que é um jabuti? 
Ele olhou para a vendedora com o mesmo olhar de espanto que meus colegas, quando os perguntei a primeira vez. Meus colegas observavam de longe, cochichavam e riam olhando pra mim. Não liguei, pois sabia que Seu Leônidas era gente boníssima e não ia me sacanear. Daí ele disse com seu sotaque hispânico já gasto pelos anos de influência brasileira:
   - Garoto, uno jabuti és quando alguien lhe pede pra butar algo en determinado lugar, so que você já butou. Aí usted diz; "jabuti!"
O velho Leônidas e a vendedora riram tanto disso, em tom de tamanha chocarrice, que eu não tive outra reação a não ser a de abaixar a cabeça. E sem que eu percebesse, todos do bar haviam prestado atenção no meu diálogo com Leônidas e a vendedora e todos riam de mim também. Era o fim da picada! Todos riam do jabuti e eu queria achar graça também. Mas todos achavam mais graça ainda do fato de eu não saber o que era um jabuti e parece que queriam me conservar na ignorância somente pra me terem como objeto de graça. Isso era inaceitável! Eu resolvi, sem dar tchau a ninguém, ir embora, e sem pagar minha parte! Eles que pagassem. Estavam me achincalhando. 
    Estava triste por tudo aquilo, mas a dúvida ainda era maior do que a tristeza. E de repente, somado à isto, me sobreveio uma ansiedade muito grande. Eu imaginava mais ou menos o que era um jabuti. Pensei que pudesse ser uma árvore, um veículo de transporte, uma ferramenta de mão ou até mesmo um dinossauro pré-histórico. Meu ser sorria quando eu imaginava o momento que eu descobriria o que era na verdade um jabuti. Resolvi consultar um dicionário online, usando a internet do celular. Estava num bom lugar, o sinal era forte e não foi difícil pesquisar. Logo apareceu o link que salvaria meu dia! Quando eu toquei na tela, e começou a carregar, me apareceu um danado de um trombadinha e me levou o celular, e saiu correndo numa velocidade tão grande, que não deu tempo nem de processar direito o fato ocorrido. Quando me dei realmente conta de que tinha sido roubado, o meliante já estava muito longe e totalmente camuflado na selva de pedra. Naquele momento eu percebi uma coisa; A ignorância é uma bênção pra alguns. Tentar procurar o conhecimento, em determinados casos só nos traz azar. Realmente, eu não poderia ter acesso a essa informação. E então, num dia mal, sozinho na rua, resolvi parar com minha busca e aceitar o fato de que eu nunca poderia saber o que era um jabuti. E caminhando pra casa, desolado, com o olhar vago, passando por um descampado meio recantado que ficava próximo à minha residência, pisei sem querer n'algumas pedras. Foi neste momento que escutei um:
   -Ai!
Eu dei mais uns três passos levantando as sobrancelhas e parei. Virei a cabeça vagarosamente pra trás e olhei pras pedras em que eu tinha pisado. Uma delas estava se mexendo. E de repente projetou pra fora de uma cavidade duas perninhas e uma cabeça comprida e me disse:
   - Ronaldo! Sua busca termina aqui! Eu bem sei que você está há bastante tempo querendo saber o que é um jabuti. Todos caçoaram de você e não te levaram a sério. Você foi roubado, perdeu seu celular caro por conta da sua dúvida, e eis que o esclarecimento está sobre a sua frente. Eu não sou uma pedra falante, sou um jabuti! Um réptil da ordem dos quelônios. Um animal muito agradável pra se ter em casa, e infelizmente muito apreciado como prato típico no interior do Brasil. E então, se sente melhor agora que sabe o que é um jabuti?
Era bem verdade que aquele tinha sido o fato mais estranho do meu dia. Depois de ter sido esculachado pelos meus colegas da faculdade, pelo dono do bar que eu frequentava e ter sido roubado, aquilo realmente não me parecia ser boa coisa. Resolvi me libertar da ingenuidade e falar praquele ser cascudo que carregava a própria casa nas costas:
   - Cala a boca seu animal inútil! Eu posso ser zoado pelos meus colegas, pelo dono do bar, pela vendedora e pelo ladrão que provavelmente deve ter deduzido que o dono do celular não sabia o que era um jabuti. Agora, ser zoado mais uma vez, no fim do dia, por você não! Posso ser burro, mas não sou idiota. Prefiro permanecer minha vida inteira sem saber o que é um jabuti do que acreditar numa lorota contada por uma tartaruga!



   

segunda-feira, 13 de maio de 2013

Pra que tanta ganância Juvenal?

    Eram cinco e meia da manhã. Meus olhos desturvavam-se vagarosamente e eu sacudia a cabeça para acelerar o processo. Estava indo pro trabalho, já conformado com o iminente atraso, baseado nos cálculos em função do caótico trânsito moderno. O ônibus tinha dado um solavanco tão forte, que tirara minha disposição pra dormir. Parece que ficou no buraco meu torpor, esmagado pelas grandes rodas traseiras.
    Do banco de trás era possível ver todas as pessoas do ônibus. Eram as mesmas, praticamente as mesmas, todos os dias. Até o motorista era o mesmo. Na parte de trás - onde eu sempre sentava -  sentavam-se aqueles que buscavam dormir, refugiando-se nos assentos ao lado das janelas, buscando o amparo da lataria do ônibus fingindo um coma para fugirem da incumbência de terem de ceder o lugar pra alguma dama, ou velhinho que aparecesse. É bem verdade que as pessoas fogem disso. Nos bancos do meio ficavam os que estavam mais descansados. Quase nunca estavam dormindo, a não ser um garotinho pequeno que pegava o ônibus sozinho com roupa de colégio e viajava cinquenta quilômetros pra sua escola na capital - me parecia que o rapaz era prodigioso, pois seu uniforme era dessas escolas federais que tem que fazer exame pra entrar -. O pobrezinho tinha um ronco tão agudo que dava pena de ver tão prostrada uma criança tão nova. Lá na frente, nos bancos preferenciais, ficavam três velhinhos animados que conversavam quase sempre sobre os males governamentais, sobre times de futebol locais e sobre a demora da viagem. Quase sempre ultrapassavam a barreira do politicamente correto e xingavam o pobre motorista que buscava, apesar de tudo, fazer a viagem no menor tempo possível e era até muito heróico em sua direção (só para os passageiros), quando a demora estava insuportável, ele inventava manobras que pareciam fazer o busão sobrevoar por cima dos carros e planar naquele céu de ferro e manta asfáltica; E nos outros bancos dali da frente, ficavam um grupo de pessoas que saltavam todo dia no mesmíssimo lugar: Um ponto antes do final, que era o ponto que eu saltava, sozinho. Sempre era o último a descer do ônibus, pois, raramente alguém saltava junto comigo no ponto final.
     Uma dessas pessoas, que sentavam lá na frente era o Juvenal. Sabia o seu nome pois ele conversava com os velhinhos, muito animosamente, quase sempre bradando bordões ou sacaneando algum deles que dizia rindo-se: "Ah Juvenal! A viagem com você é muito mais divertida!", "Só você mesmo pra falar isso Juvenal!". Ele fazia quase um stand up comedy no ônibus. Até os passageiros mais tímidos não furtavam-se à dar boas gargalhadas com ele. E comigo não era diferente. As pessoas de lá da frente eram em parte incomodadas (os pouquíssimos que queriam dormir), em parte agraciadas com a presença daquela grande figura; um sujeito muito interessante com nome e jeito de papagaio.Juvenal era um sujeito ativo, espaçoso. Mesmo se o ônibus estivesse lotado, ele liberava em volta de si pelo menos um metro quadrado para suas gesticulações e encenações.
    Quando chegava a hora do grupo da frente saltar, era sempre Juvenal que puxava o sinal. Sempre! Ninguém se importava pois sabiam que Juvenal iria puxar seguido de um: "Próximo aê motor, que o patrão já tá cansado de esperar! hahaha" E todos eles saltavam no mesmo ponto. Esse era o ritual pitoresco que eu presenciava. Só que naquele dia, Juvenal saltou um ponto antes do habitual, se despedindo do grupo da frente que ficou surpreso, e de todas as pessoas do ônibus que prestavam sempre atenção nele; explicando que estava saltando ali porque tinha mudado de emprego, iria começar numa outra firma que ficava a dois quarteirões antes do ponto em que ele saltava todo dia com o grupo da frente. Sua justificativa era que queria ganhar mais dinheiro pois não se sentia valorizado na empresa que o tinha admitido já 15 anos como porteiro. Todos disseram; "Que legal Juvenal!", "Parabéns cara, você merece.", "Agora então quem paga a cerveja é o Juvenal gente!" Quando Juvenal desceu, rindo e acenando pra todos, um silêncio tremendamente estranho tomou conta do ônibus. Parecia que ninguém ali se comunicava se Juvenal não estivesse presente. Era estranha demais aquela cena e ao mesmo tempo muito apreciável. As mesmas pessoas que se viam todos os dias, se conheciam até mesmo por nome, não conseguiam conversar uns com os outros, se um fator mediador não estivesse ali; E esse fator era o grande comediante e animador de coletivos por nome papagaiesco de "Juvenal". Ele era um dos motores do ônibus; o da comunicação. E neste aspecto, o ônibus, apesar de movendo-se, estava parado. 
     Aproximava-se o ponto em que todo o grupo da frente descia. À essa altura, só eu e eles estávamos dentro do ônibus, como de costume. Eu perguntei aos meus botões: "E agora?! Quem vai puxar o sinal? hoje não tem Juvenal!" (por um momento orgulhei-me dessa rima até a constatação de sua absoluta pobreza). Eles ficaram se entreolhando, mesmo sabendo que o ponto em que saltavam estava se aproximando cada vez mais, ficaram totalmente alheios, apáticos. Eles se fitavam, esperando uns pelos outros e imóveis viram o ponto chegar e o ônibus não parou pois NENHUM deles puxou o sinal. Posso dizer que eram como se fossem expectadores observadores da própria tragédia. Era visível o descontentamento e aflição, mas eles não conseguiam se expressar, nem agir. Pois Juvenal não estava ali. Eu observava tudo aquilo. Uns dois ou três, até se levantaram e olharam para o ponto que agora era passado e fizeram uma cara quase nostálgica. Nisso, o motorista olhava por cima do óculos pelo espelho retrovisor e ria-se discretamente, parecendo até querer "ver n'aonde aquilo ia dar", e se algum deles viesse reclamar ele já esboçava dizer: "Meu amigo, eu não tenho bola de cristal não, vai que vocês estavam querendo realmente saltar no próximo?" Mas nenhum deles iria lá reivindicar isso. A mudez pós-juvenálica era famigerada. Agora eles teriam de saltar no ponto final, que era na rodoviária da cidade. Não tinha outro jeito, teriam que andar um bocado. 
    Antes da rodoviária, há poucos metros, havia um cruzamento. O sinal estava vermelho. Eu ia descer normalmente na rodoviária propriamente dita como religiosamente eu fazia todos os dias, mas, dali avistei ao lado do ônibus um conhecido do trabalho. Resolvi antecipar minha descida pedindo gentilmente ao motorista pra saltar ali mesmo, pra ir ao encontro do colega e irmos juntos até a firma, aproveitando que o ônibus estava na pista ao lado da calçada. Ele prontamente abriu a porta. Eu dei uma última olhada praqueles homens frustrados, todos chateados porque teriam que saltar um ponto depois do habitual, consequência de sua própria inebriez e desci do ônibus rindo comigo mesmo, já esboçando como contar a história em qualquer ocasião daquele dia. Foi então que, quando o sinal ficou verde, o ônibus avançou, e na pista contrária, um caminhão em alta velocidade surgiu desgovernando-se de uma hora pra outra, batendo em cheio no ônibus, não dando chance ao motorista. A batida foi tão forte, e jorrava tão caudalosamente o combustível que incendiou o grande carro e em poucos instantes formou-se um cogumelo de fogo no céu. E todos os que estavam lá dentro, de lá não saíram tão cedo. Outros carros somaram-se ao desastre formando um grande engavetamento. E eu, trêmulo, estagnado, não me importando com um estilhaço da carroceria que bateu na minha cabeça, pensei: "Pra que tanta ganância Juvenal?".

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Retratação

Permita-me, em tom amigável, e que me confere a amizade de longa data, com a colega Verônica, extremamente cara à mim, lhe comunicar que, projeto novas postagens. Concordo com ela, quando ela ensaia sobre a importância deste espaço como válvula nossa de escape. Peço perdão pela inconstância, estive envolvido em coisas mil, eu deveria trilhar com mais frequência o caminho da conciliação e do equilíbrio. Eu não declarei o fim deste blog, e não o pretendo fazer (perdoe-me pela ousadia). Quero reprojetar os conteúdos e integrar as postagens. Emfim, desejo continuar lançando nossas "mensagens na garrafa" deste mar. Podemos estar entretendo náufragos, ou mesmo, tornando menos penosa a viagem de velejadores obstinados. Não importa. O importante é dizer... enunciar.. comunicar.