segunda-feira, 2 de março de 2015

Herança

    Lá na portaria, é um lugar de muita agitação. Apesar d'eu ser tímido e não conversar com muita gente, tenho que me comunicar a todo instante pra dar informações, abrir e fechar portões, ajudar motoristas desajeitados a estacionarem seus veículos de modo que o espaço do estacionamento seja melhor aproveitado pra caber mais carros, e por aí vai. Os carros são um capítulo a parte. Não me interessa ensaiar definitivamente sobre isso, mas, me parece que eles são impulsionadores do que há de pior em nós; o egoísmo. Mas não me convém falar por agora da estúpida indignação que as pessoas apresentam quando eu digo que não há mais vagas no estacionamento - e que por conta disso terão que estacionar seus carros na rua mesmo - , mas quero falar de uma experiência que me fez enxergar uma verdade simples, mas muito bela e densa.
    Cumprimento a todos que passam na portaria da escola que eu trabalho. No turno da noite funciona um curso técnico, e o quadro de alunos, conforme o tempo vai passando, vai mudando. Os alunos vão se formando, e consequentemente vão entrando outros, essa coisa toda normal da vida. Numa dessas novas levas de alunos, avistei de não muito longe um rapaz que eu nunca tinha visto passar por mim na portaria. Ele estava com o uniforme do curso e mantinha a cabeça baixa, olhando pra sei lá o que no chão. Ele se aproximou mais e levantou a cabeça. Um rapaz "normal" como se diria. Um verdadeiro "homem médio". Barba feita, cabelos bem cortados, calça jeans e a blusa azul do uniforme de aluno. Quando ele estava já bem perto, pude ver mais claramente suas feições e algo me chamou muita atenção, ele me era muito familiar. Seus olhos traíam simpatia e bondade, e quando passou por mim me cumprimentou com simplicidade, discrição e poucas palavras, porém com muito respeito, educação e simpatia. Eu desejei de volta uma boa noite e fiquei a pensar se por um acaso eu não conhecera ele em épocas remotas, na infância, ou até mesmo da televisão ou da internet. Não cheguei a nenhuma conclusão a esse respeito, nem mesmo depois de ele passar novamente pela portaria, desta vez indo embora para sua casa ao final da aula. Sem nenhuma apologia e/ou menção a esoterismo, ou coisas afins, mas essa história de aura positiva da pessoa, é meio que verdade. Ele tinha isso. Emanava de seu rosto, de seus olhos, dava pra ver! Tanto quando me cumprimentava quanto quando passava com seus colegas de classe na hora de ir embora, no seu trato com os tais.
    E assim foi, por todo o tempo que ele estudou lá. Quando acabou seu curso, eu não mais o via passar por ali. Só de vez em quando na praça da cidade ou no centro. Mas sempre ficava a pensar como podia alguém transparecer simpatia e simplicidade sem ao menos falar ou agir. Isso pra mim figurava como uma verdadeira incógnita. Mas, um dia, eu pude compreender o porque.
    À caminho do centro, eu subia um morro, cansado. Até que olhei de longe e avistei este rapaz e ao seu lado estava uma senhorinha morena, de cabelos curtos, vestido exageradamente estampado, e então eu pensei; "Aquela deve ser a mãe dele." e de fato era. Porque quando me aproximei mais, reconheci uma das pessoas mais legais que já conheci na vida! A Tia Lucinha. Ela era merendeira da escola que eu estudei no ensino médio. A Tia Lucinha era venerada por todas as crianças, era muito simpática, sorria para TODOS e ainda me dava um pouquinho mais de doce de leite quando esta era a sobremesa. Ela sempre brigava com o diretor da escola quando pessoas necessitadas vinham almoçar no refeitório da escola e este dizia que a escola não era a mãe delas. Era a única vez que a gente via a Tia Lucinha brava.
    Logo tudo se conectou, e eu percebi da onde conhecia aquele rapaz. Quando fomos nos aproximando, meu cansaço sumiu completamente e eu a fui abraçar e também cumprimentei o seu filho, revelando a surpresa de conhecê-lo lá do meu trabalho. Cometi um ato falho ao dizer que foi surpresa, porque mesmo que inconscientemente, eu reconhecia a Tia Lucinha naquele rapaz.
    Constatei depois disso tudo que eu quero ter a virtude de passar aos meus filhos o que há de melhor em mim.