quinta-feira, 29 de maio de 2014

Suicida por engano



    “Luisinho meu velho, pode ficar com a bicicleta pra você. Você não sempre quis uma? Então, ela é sua! [...] Não, não tá acontecendo nada não, está tudo ótimo. Tchau.” Horácio desligou o celular rápido, mas sem ser grosso. Apenas para não dar margem a indagações das quais não tinha mais paciência pra responder. Luisinho havia sido a última pessoa da lista que ele preparara pra ligar antes de pular do viaduto. Terminado isto, jogou o celular o mais longe que pode.

    Olhando para o horizonte, tentou buscar no infinito uma derradeira razão para não mais dar cabo à vida. Avistou aves ao longe que voavam em bando, naquele formato angulado, característico das aves migratórias que viajam milhares de quilômetros. Por um momento ficou imaginando se aquelas aves sabiam de fato pra onde estariam indo, ou se estariam voando guiadas por uma força superior que regia o mundo natural. Concluiu algo aterrorizante naquele momento; ele sabia exatamente pra onde estava indo. As aves voavam daquele jeito, pois, estavam cegas de instinto natural para buscar alimento e boa temperatura, talvez. Já ele estava totalmente consciente do terreno em que estava pisando. Consciente até mesmo na ciência da falta de certeza do que lhe era a própria morte.

    A vida perdeu completamente a razão logo depois que ele descobriu que sua esposa, sua querida esposinha, a, desde criança amada, Talita, o traiu (e o traía frequentemente) com seu melhor amigo desde a meninice, o Celso. Como conceber uma desgraça dessas? Como aceitar uma conspiração que durava sabe-se lá desde quando! Auto-conjecturava Horácio. Seus dois sustentáculos na vida, agora provocaram sua ruína. Quantas coisas lhe foram veladas, “Quantas vezes eles riram de mim..” pensou. Agora ele entendia porque Celso não saía da casa dele. Lhe veio como um turbilhão toda a carga de sentido daquela horrível coisa que até então nunca tinha sido nem mesmo cogitada em sua pobre mente inocente. Neste momento Horácio lembrou do jargão que se popularizou nas redes sociais, proferido pelo cantor baiano Compadre Washington e percebeu a força desta pequena frase publicitária que havia ganho o Brasil. Realmente ele não sabia de nada, DE NADA! Pobre homem bom. 

     Pensou; “Pois bem,  eu não vim aqui pra dar IBOPE pra mim mesmo. Tenho que aproveitar que esta parte de cima está em obras e sem trânsito. Minha hora de fato chegou.” Olhou pra baixo e suas pernas gelaram. Um arrepio que ocorria até mesmo em todo o couro cabeludo lhe foi pungente naquela hora. 
     Não passavam lá muitos carros àquela hora da manhã, mas os poucos que passavam corriam assustadoramente rápidos. A sensação de pânico e tensão era sobremaneira visível no pobre homem desiludido, mas, de repente, tudo mudou. Uma frieza estranha o tomou, de modo que as respostas biológicas provocadas pelo medo cessaram. Suas pernas pararam de tremer e findou-se o frio na barriga. Uma "inexplicável" indiferença invadiu Horácio naquele instante e ele subiu sem dificuldade nenhuma no parapeito não tendo mais receio da mortífera queda. Tudo seria rápido. Eram aproximadamente 05h30min da manhã e ele tinha o objetivo de pular rápido para evitar aglomerações. Mas, ainda que aparecessem as pessoas, seria inútil. Sua sinistra obstinação não daria margem nem ao melhor negociador do mundo. Nada o convenceria. Mas, de fato, ele queria concretizar logo seu plano. A vida já lhe era indigesta demais àquela altura.

     Era chegada a hora. Horácio sentiu o horror do momento, mas, não impressionou-se consigo. Tentou uma última vez, como recurso extremo de sua quase inexpressiva vontade de viver, condicionar-se a não se enraivecer com Talita e Celso, sobretudo com este, mas foi inútil. O rancor e a inconformidade eram tamanhos, que a frieza e indiferença assumiram de uma vez por todas sua alma por completo. Não havia mais volta dali pra frente.
      Fechou os olhos, esvaziou os pensamentos e já ia deixando-se cair. Entretanto, neste momento, algo o freou de deixar a gravidade agir inteiramente sobre seu corpo e fez seus pés grudarem no parapeito, fazendo com que seu corpo se desequilibrasse, mas, conseguiu manter-se de pé.

    "Ué!" Ele mesmo não entendeu absolutamente nada. "Como pode isso!?"  Ele não sentira mais hesitação, então, porque mesmo ainda manteve-se ali em cima? Sentiu a perda do controle dos próprios movimentos, mas, ao mesmo tempo, não sentia que algo o prendia. no mínimo estranho. 
      Afinal de contas, o que o segurou no alto daquele maldito viaduto naquele momento? De repente, Horácio teve uma visão.

     Sentia que estava em pé ali, corporeamente, no parapeito do viaduto, mas, ao mesmo tempo, foi levado a um lugar estranho, uma sala não muito grande de paredes brancas pintadas grosseiramente de branco, com pouca luz e cheiro de flores baratas, e um monte de gente em pé e outros sentados. Não dava pra distinguir muito bem quem eram, nem onde exatamente ele “estava”. Sua visão estava turva a princípio, mas logo foi ficando nítida, como um fade, e ele teve a pitoresca conclusão de que estava numa.. "Não pode ser!" exclamou, numa capela funerária! Havia um caixão no meio, e uma coroa em cima; flores brancas e um dizer genérico e tosco como "Saudades eternas." E todas as pessoas eram conhecidas e/ou familiares! 
     Horário estremeceu naquele momento. Pensou; “Teria sido eu transladado ao meu próprio funeral antes mesmo de morrer?”. Os calafrios o atormentaram por breve instante, mas, ele pensou: “E daí! Não tenho mais prazer com nada mesmo. Já que estou aqui no dia final de minha pobre vida, vamos ver então como está sendo o “luto” dos meus.” – Riu-se ironicamente.

    Olhou a sua volta e começou por quem estava lá na frente; seu pai e sua mãe. Estavam com uma expressão de não-resolução no rosto e os olhos muito vagos e distantes. Coitados. Nunca foram maus, mas também, nunca foram muito bons. Sempre minaram os sonhos de Horácio. Sempre tentaram impor seus desejos sobre os do filho, de uma forma não razoável. Isto provocou feridas irreparáveis em Horácio dificultando muito sua vida. Ao contemplá-los ali, não sentiu raiva deles. Também não foi indiferente, mas, de fato, não se importou demais. Já fazia uns bons três anos que não se falavam direito também. Celso é que era o único elo que ainda estabelecia comunicação entre Horácio e os pais. Ele era também um filho deles, por sempre estar presente na vida de Horácio. Um dia Celso disse a Horácio que seus pais haviam dito; “Celso meu filho, fala pro Horácio trazer o Juquinha pra passar uma temporada com a gente.” Horácio respondeu a Celso na ocasião: “Cara, vê se eu vou fazer isso com meu filho! Ele vai pra lá querendo ser músico e volta com ideia de ser economista.” Horácio não queria que os avós de Juquinha minassem seus sonhos como tinham feito com ele.

    Continuou a examinar as pessoas e viu a mãe de Celso inconsolável. “Tadinha da Tia Inês. Não queria fazer ela sofrer assim.” – pensou. Ela sempre fora muito boazinha. Não sabia conversar, não sabia dar conselhos, mas tinha bom coração. Ao lado dela, surpreendentemente estava o canalha do Geraldo, o pai de Celso. Surpreendentemente sim, pois, ele os havia abandonado há muito tempo e agora estava ali abraçado com ela, do nada. Horácio não entendeu, mas seguiu com o exame dos presentes. 
    A figura de Celso permeava a tal visão que Horácio estava tendo enquanto estava de pé no parapeito de um alto viaduto. Tudo que aparecia na visão de Horácio o fazia relacionar com o “ex-amigo”. Estranho. Mas não surpreendente. De fato, Celso tinha direta relação com a morte de Horácio. Ficou então a pensar sobre a ausência de seu "companheiro" no velório. “Otário! Viado!” – Horácio pensou. Mas pelo menos não era fingido como Talita que estava a soluçar ao lado de Tia Inês (ele não poderia presumir que ela estivesse ao lado de seus pais. Eles a odiavam e um dia amaldiçoaram ela numa briga por motivo banal). “Desgraçada! Vagabunda! Eu te amava tanto! Eu vivia em sua função..” Horácio chorou escondendo a face com a mão esquerda. Logo após, explosivamente exclamou em fúria: “DANE-SE VOCÊ E JOBSON! Se merecem os dois dissimulados.” Olhou seus vizinhos e viu os da casa da frente que sabiam do que ocorria entre Talita e Celso e nunca tiveram coragem de contar ou pelo menos alertar. Cuspiu na cara deles expressando seu repúdio. Pena que eles não sentiram a frieza da saliva de Horácio, pois era apenas uma visão. Horácio era uma fantasma ali. O padre que estava celebrando a cerimônia era outro desafeto de Horácio. Quantas vezes ouviu celso confessar que estava tendo um caso com a mulher do melhor amigo e não fez nem falou nada. Nada! Só dizia com seu sotaque estrangeiro de país indefinível; “Está perdoado meu filho.” Horácio era puro ódio naquele momento. Olhou a todos os presentes de uma forma geral e sentiu nojo da própria existência, que já era duvidosa e paradoxal naquela hora.

    Chegara o tórrido momento de encarar o próprio destino. O caixão estava lá. O imponente e envernizado paletó de madeira não tinha sido um incômodo para Horácio até o presente momento, mas, agora, concebida a ideia de se ver morto, o caixão passou a aterrorizá-lo. Horácio não soube definir ao certo qual seria sua reação ao ver o próprio corpo gélido deitado sobre o artefato funerário. Horácio começou a pensar como era enfadonho o trabalho do construtor de caixões e de como ele tem que ser um eterno negligente com a problemática da morte. "Isso não é coisa para humanos. Esses caras têm que ser androides sem sentimento algum." pensou Horácio acerca dos marceneiros funerários.
      Horácio hesitou em se ver morto. Que coisa estranha! Por um momento refletiu se antes de morrer, todos eram transladados para alguma situação envolvendo a própria morte como ele estava sendo. Quem sabe, talvez. Mas é certo que todos nós temos o direito de controlar certos setores da vida. Outros, nos são eternas surpresas. A própria morte por vezes é uma surpresa. Não a de Horácio.

    Ele, depois de muito hesitar problematizando sobremaneira o encontro funesto de si mesmo, resolveu ir até o seu caixão e examinar a própria face mórbida. Queria fazer uma leitura da sua expressão. Quem sabe sondar qual teria sido sua última sensação antes de fechar pra sempre os olhos.
    Seus passos em direção ao caixote sinistro eram lentos, mecânicos, tortuosos, depressivos, mas constantes. Foi chegando cada vez mais perto, avistando mais nitidamente as flores brancas que lhe davam uma ternura que ele sempre quis ter em vida. Foi perpassando as flores que juntas formavam um golpe de vista quase impecável, mas, havia alguma coisa errada. O arranjo estava reto. "Que estranho!" pensou. O abdômen de Horácio era globoso desde a adolescência. Continuou subindo o olhar, devagar, ignorando este fato, como se pudesse observar todo o corpo (se estivesse à mostra), mas não o rosto. O rosto não. O rosto pálido e sem vida seria uma realidade aterrorizadora. Seus olhos cerrados e sua boca roxa com certeza provocariam uma sensação horrível. Olhou pra baixo, suou frio, tremeu, mas, respirou fundo e olhou para o rosto. 
    Suas pernas gelaram (muito mais do que no primeiro momento que ele chegou à beira do viaduto), seu coração acelerou, a tremedeira era geral, da cabeça aos pés. Não porque estava se vendo morto, mas porque ERA CELSO QUE ESTAVA NO CAIXÃO!

    Sim! Era Celso! Aquele não era o seu próprio velório, mas o velório de seu amigo. “Mas, como pode ser! Eu pensei que...” Horácio não sabia explicar nem quantizar o tamanho de sua frustração. O que sentir naquele momento? Tristeza? - grande novidade! Alegria? - por não ser aquele seu velório? mas, Horácio planejava a pouco suicidar-se. Indiferença? – Horácio até almejou a indiferença sentida quando estava lúcido em cima do parapeito, mas, frustrou-se duplamente ali, por que, gradativamente, um sentimento diferente invadia-lhe a alma naquele momento. Foi então que, como num turbilhão, como uma enxurrada, vieram as lembranças dele e de Celso. Lembrou de quando eram coleguinhas de jardim de infância, quando faziam bagunça juntos dentro de sala de aula, quando faziam dupla de ataque imbatível na escolinha de futebol do seu Nino, dos muitos churrascos celebrados, das aventuras de enguiçamento de carro em lugares inóspitos, das algazarras no ensino médio e na faculdade, do primeiro salário que os dois foram juntinhos no banco pra sacarem cada um o seu, e muitas outras coisas boas, EXCELENTES, MARAVILHOSAS que só uma boa amizade como aquela poderia proporcionar a alguém. Horácio chorou, chorou demais! Soluçou e abraçou o caixão.

    “Meu grande amigo, companheiro de todas as horas! Você me deu um desgosto em vida, mas que importa?! Agora você está gelado em um caixão, e não posso mais tê-lo comigo! Foi tremendamente errado o que você e Talita fizeram comigo, mas, tenho certeza que você se arrependeu disso. Se não fosse assim, não teria ido se confessar com o padre como fiquei sabendo. Agora vejo que de nada adianta o rancor na vida homem. Ele não anula o valor de quem você ama, mesmo que essa pessoa aja errado com você e tal.. E agora, você não tem mais vida pra eu te perdoar e esse fardo eu carregarei pra sempre, tudo culpa de um rancor idiota! Como eu queria que você estivesse vivo pra eu te dar um abraço! Mas.. HEI!” Horácio lembrou..

    Por certo, aquilo se tratava de uma visão. "não era real"! “Era só pra me mostrar que não é bom que eu tire a minha própria vida e que Celso, apesar de tudo é sim um bom amigo que não quero perder!” Horácio, julgando ser esta a lição que deveria aprender, renovou-se, respirando aliviado, como quando se percebe que um pesadelo é apenas um pesadelo, mas ainda mantém-se no pesadelo (isto acontece, sabemos que.)

    O pobre homem em pé no parapeito do viaduto voltou a si. Terminara a visão. Olhou para baixo e ficou tonto. Quase caiu, o que provocou acelerada arritmia nele, mas restabeleceu-se e se reequilibrou. Sacudiu a cabeça e olhou para o horizonte. Ele estava experimentando agora um novo estágio de compreensão da vida. Esta experiência, talvez psíquica, talvez transcendental, aquietou os fantasmas que Horácio dera voz. Ele agora, ao ver os primeiros raios de sol ao longe, desejava não mais pular dali, mas, descer daquele viaduto e ir ao encontro de Celso e dizer-lhe que não se importava com o que tinha acontecido e que o ia perdoar. E agradecê-lo porque mesmo sem saber, ele o tinha salvado a vida. A amizade deles tinha salvado a vida de Horácio. Com Talita ele se acertava depois, também desejava perdoá-la. Ele a amava, assim como amava Celso.

    Horácio de repente começou a achar graça de si mesmo. “Pobre homem louco que sou eu!” Começou a descer colocando para dentro do calçamento primeiramente a perna direita, entretanto, nesse instante, foi surpreendido por um fortíssimo vento de outono, que infelizmente o desequilibrou e o fez cair, sendo inútil sua luta pra se segurar no parapeito. Era uma boa altura. A sobrevivência era deveras improvável. 
      A queda foi brusca e desajeitada, mas Horácio não se chocou contra o chão. Chocou-se contra um pobre ciclista que passava - como trivialmente fazia - exatamente ali, em baixo do viaduto naquele momento. Horácio, apesar de ferir-se muito, não morreu, deixando este trágico encargo para o ciclista que tomou uma joelhada de Horácio (com força gravitacional amplificada devido à queda) diretamente no crânio. Não houve chance para ele. Amorteceu a queda de Horácio e sacrificou involuntariamente a vida para salvá-lo.

    Horácio ofegava caído no chão. Não se importava diretamente com a dor, apesar de esta ser insuportável. Seu corpo agora tinha vários ossos quebrados pela queda e hemorragias mil, mas, suas avarias não tinham sido mortais. Sua mente estava em completo paradoxo! Tentou organizar os fatos pra quem sabe traçar o desencadeamento dos acontecimentos. “Eu, há pouco, queria me matar. Tive uma visão que me fez mudar de ideia. Quando eu resolvo descer do parapeito e não fazer esta besteira, um vento forte vem e me derruba, mas não me mata, mata um ciclista que passava em baixo exatamente na hora da queda. É SÉRIO ISSO?!” Horácio estava inquieto, estressado, em meio à uma tensão extrema. Mas, o que deixou mesmo Horácio em total estado de choque agonizando em desespero profundo, foi ter descoberto ao se arrastar dificultosamente para o lado que o ciclista era Celso.

   


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